Vi esta
notícia (“Vítimas do
Meco vistas a rastejar com pedras nos tornozelos“) no Facebook.
“Isto é uma
praxe. Uma experiência de vida. Não se meta.” Terá sido desta forma que os
alunos da Lusófona, que integravam o grupo estudantes que foram arrastados por
uma onda na praia do Meco, se dirigiram aos moradores de Aiana de Cima que os
abordaram na tarde de sábado, horas antes da tragédia, indignados com os
contornos de humilhação a que se estavam a sujeitar.
Os
comentários no Facebook seguiram-se. Condenações da praxe, elogios da praxe, de
tudo um pouco.
Vamos
pensar sobre isto. Uma hierarquia de poder existe porque alguém aceita
submeter-se a ela. É um contrato social como outro qualquer, desde a família
até ao Estado. Se ninguém se submetesse a ela, esse poder seria esvaziado e a
hierarquia, consequentemente, deixaria de existir.
Então,
primeira pergunta: o que leva alguém a submeter-se à hierarquia de poder
“praxe”? O medo, diria. Medo de ficar excluído, de recusar um grupo possível de
amigos, de passar por cima de uma experiência, etc. Mas, na verdade, a praxe,
como surgiu em Coimbra e como ainda se pode ver no código, é um sistema que
regulava as relações entre estudantes e dos estudantes com o resto da cidade.
Não esqueçamos que aqui, pelo século XIX, havia uma segregação entre a parte
futrica e a parte estudante da cidade. Era um equilíbrio social complicado, e o
código da praxe surgiu como uma espécie de auto-regulamentação, que impedia que
as pessoas fizessem merda e fossem parar aos calabouços da guarda
universitária. Ainda hoje existem. Passem pela FDUC, vão até às escadas de
Minerva e peçam a um bedel que vos mostrem. Não são bonitos.
Ou
seja: essa coisa da praxe servir para integrar os caloiros na vida
universitária não é a razão que está no seu âmago. A razão é a permanência de
uma estrutura social do século XIX. Tradição? É o argumento mais falso que
existe na coisa toda. Se o mundo que envolve a praxe mudou, o papel que ela
ocupa no mundo muda também, portanto, não existe qualquer possibilidade de
manter tradição. O pessoal conhecer-se e criar amizade sempre foi uma
consequência, não a causa.
Segunda pergunta: essa consequência vale o esforço? Os defensores da praxe usam o seu efeito de integração para justificar todo e qualquer abuso e toda e qualquer patetice. Isso não se conseguiria convidando o pessoal novo para uma cerveja e batendo uma conversa e pronto? Para que pintar-lhes a cara e obrigá-los a fazer coisas burras?
O problema é que nós somos pessoas. Não tenho grande fé nas pessoas. Nós não fazemos atos de aproximação gratuitos; na generalidade, precisamos de uma justificação banal para eles acontecerem. Essas cerimónias patetas são essa justificação. Mas, ainda assim, há pessoas e pessoas.
Segunda pergunta: essa consequência vale o esforço? Os defensores da praxe usam o seu efeito de integração para justificar todo e qualquer abuso e toda e qualquer patetice. Isso não se conseguiria convidando o pessoal novo para uma cerveja e batendo uma conversa e pronto? Para que pintar-lhes a cara e obrigá-los a fazer coisas burras?
O problema é que nós somos pessoas. Não tenho grande fé nas pessoas. Nós não fazemos atos de aproximação gratuitos; na generalidade, precisamos de uma justificação banal para eles acontecerem. Essas cerimónias patetas são essa justificação. Mas, ainda assim, há pessoas e pessoas.
Eu
fui praxado em Coimbra. O que é que eu fiz? Nada que não faça hoje numa noite
bem bebida, suponho. Jogar à apanhada com pessoal que não conheço. Simular um
jogo de bilhar, em que uns gajos eram bola, outro era taco, etc. Enrolarem-me
uma capa na cintura para fazer de saia, porque era o único gajo com cabelo
comprido e tive de fazer de conta que era uma gaja numa discoteca a ser
engatada. Subir para uma cadeira num café e fingir que era o João Baião no Big
Show Sic. Ninguém me pintou a cara, foi uma bela manhã de 5a feira, ri-me
muito, realmente comecei grandes amizades aí e não me senti nem um pouco
humilhado. O pessoal que me praxava era porreiro. Depois disso, a minha “praxe”
durante o ano era querer estar em casa na 6a feira à noite e ligarem-me com uma
ameaçazinha pateta qualquer a dizer que tinha de sair com eles. No fundo,
apenas uma forma de dizer “gostamos de ti e queremos que nos venhas encontrar”.
Nada que um amigo meu não me vá fazer hoje mesmo. Se, no meio desses desfiles
gigantes que Coimbra tinha, algum idiota me vinha chatear e queria que eu
fizesse alguma coisa burra, eu dizia-lhe que não. Os meus “padrinhos de praxe”
eram, e continuam, meus amigos. Que se fodessem os idiotas.
Eu
sei que sempre se pode dizer “mas tu tinhas uma boa estrutura e confiança para
dizer isso. há quem não tenha, e essas pessoas tem que ser protegidas”. Eu sei.
Eu tive amigos que tiveram que ficar numa varanda numa noite gelada porque o
gajo que os praxava era um idiota em tons nazis. Para essas idiotices, existem
tribunais. Nenhum juiz se vai virar para uma mulher e dizer “a sua violação
repetida e sangrenta durante toda uma noite por um grupo de 15 homens não é
crime, porque você aceitou ser praxada meses antes”. Nenhum pode, pelo menos.
Qual
a alternativa para isto? Um artigo no Código Penal a proibir toda e qualquer
praxe? É preferível a este estado de coisas aquele que legitima um polícia vir
e dizer “vocês estão presos por obrigarem este homem a imitar o João Baião”?
Ainda assim, parece-me preferível a possibilidade de qualquer pessoa que seja
vítima de violência injustificada poder julgar por si mesma se o foi e poder
recorrer à justiça. Nós ainda temos uma responsabilidade por nós mesmos.
Se
entendo bem, o que está em causa aqui é que os putos foram levados pela onda
porque estavam a ser praxados. Mas e se não estivessem a ser praxados? Se
estivessem só a tomar umas latas de cerveja e fossem apanhados igualmente,
iríamos proibir as latas de cerveja? E se a “praxe”, em vez de consistir em se
arrastarem pela areia com pedras nos tornozelos, fosse ensaiar uma mega
coreografia tipo Glee – depois de a onda vir, iríamos proibir o Glee?
Não
gosto de gente idiota nem de atos idiotas. Também não gosto nada da falta de
liberdade. Se este pessoal morreu por causa da negligência ignorante de quem os
mandou para lá, quem os mandou para lá tem que se submeter à justiça. Histórias
tristes acontecem, porque a vida é uma merda. Pelo menos, que isto sirva para
os idiotas pensarem que talvez valha mais a pena ser porreiro.
1 comentário:
E se foi praxe não poderiam recusar? E se não foi praxe, não tinham cabeça para pensar que se calhar não era boa ideia ir para lá? A praxe é a desculpa, mas a culpa não é da praxe per si. A culpa está neles todos que foram irresponsáveis, negligentes com eles e com os outros e dos pais que lhes deram dinheiro para alugar uma casa para serem praxados. Se foi praxe, a culpa está no praxante que praxava mal, mas eles também não foram melhores ao seguirem cegamente o rapaz sem pensar nas consequências dos seus actos.
Não sou apologista da praxe, quem me conhece sabe que não gosto da praxe humilhante ou física. Mandar fazer porque são superiores (mas superiores em quê?), mas esta situação é muito conveniente para continuar a demonização da praxe. Quando a praxe sim é um ritual de integração, para quebrar o gelo , mas não é a culpada das desgraças e das trafulhices. Os culpados são os praxantes que não entendem que a praxe não serve para lhes dar poder os novatos, mas sim para se divertirem e conhecerem os novos colegas de cursos e ajudaram-nos na adaptação à vida universitária, cuscar um pouco sobre professores, dar dicas e apontamentos.
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